Não é todo dia que temos a chance de ver um exemplar desses. Ter a oportunidade de tocar é ainda mais rara, e de prestar um serviço de manutenção é uma autêntica mosca branca dos olhos azuis.
Por esses dias foi bem isso que aconteceu e por ser algo fora do comum decidi documentar aqui. Recebi uma mensagem de um colecionador de equipamentos vintage pedindo uma ajudinha pois uma das suas joias preciosas apresentava um ruído rasgado que parecia acompanhar a dinâmica das notas tocadas. Quando em silêncio o problema não ocorria. Apenas no canal “Normal” havia esse problema. No mais o amplificador funcionava bem.
Já sabia que se tratava de um amplificador Fender antigo, mas quando fui buscar é que entendi melhor o tamanho do achado.
Esse modelo foi ums dos primeiros a inaugurar a era “Blackface” após a antiga série Tweed da Fender começar a sair de cena.
Lançado em 1960, foi produzido em duas fases até 1965, quando a Fender pulou do circuito AA763 para o tão famoso AB763 que passou a incluir o reverb e foi utilizado em muitos modelos como Deluxe Reverb, Vibroverb, Super Reverb e Twin Reverb.
A unidade que me chegou em mãos foi produzida em 1963 e pelo número de série foi possível verificar também que foi uma das primeiras:
Este modelo nunca foi modificado e por ser produzido para utilização local, ainda possui o cabo de força original e funciona em 117v, sendo necessária a utilização de um transformador pois está na Europa onde o padrão é 230v.
Após um teste rápido o problema era bem evidente então já levei para a bancada desmontado para uma primeira inspeção visual para entender qual era a condição geral do amplificador.
A primeira coisa que gosto de fazer em qualquer amplificador é verificar o chassis na parte superior pois muitas vezes logo de cara é possível ver modificações nos transformadores, soquetes e começa a dar uma ideia do que vamos encontrar lá dentro.
As tampas utilizadas para cobrir alguns furos para válvulas se devem ao fato desse chassis ser utilizado para a fabricação de diferentes modelos na época, então quando sobrava colocavam estas tampas.
Para a idade do amplificador fiquei espantado com a condição perfeita dos transformadores, todos originais:
Outro ponto importante a se analisar em um primeiro momento é a condição das válvulas e verificar também os soquetes, se estão em bom estado, limpos ou se foram substituídos por de qualidade inferior, o que infelizmente é muito comum.
Notei algumas válvulas de pré um pouco microfônicas com o conhecido teste de ligeiras batidas com o amplificador ligado, mas ainda assim não era a causa do problema pois coloquei válvulas novas para despistar e o problema persistiu.
Os soquetes são todos originais e apesar de ótimo estado estavam muito sujos, assim como os terminais das válvulas. Causa do problema ou não, uma limpeza profunda foi necessária o que é sempre bom, mas também mostrou não ser a causa do ruído.
É legal ir fazendo por etapas, começando pelo óbvio e também pelo tipo de serviço que tem de ser feito de qualquer maneira.
Antes mesmo de virar e ver por dentro, era hora de abrir o compartimento dos capacitores de filtro carinhosamente apelidado de “dog house”.
Foi aqui que as coisas começaram a ficar interessantes. Uma das primeiras coisas a dar problema em um amplificador antigo assim são os capacitores da fonte, e ao abrir foi possível ver que quatro foram substituídos e ficou ali um original, solitário.
Já de cara eu sabia que também não era a causa do problema, pois o segundo canal funcionava perfeitamente. Esses capacitores afetam todo o circuito, e se houvesse um defeituoso o problema iria aparecer nos dois canais.
E por qual razão alguém iria colocar 4 capacitores novos de alta qualidade e deixar um antigo?
Esse foi o ponto principal durante todo o serviço que realizei no amplificador.
A cada peça substituída, menos original e menos valor de revenda o amplificador vai ter.
É uma unidade de milhares de dólares então vai muito da interpretação que o dono tem das coisas.
Do ponto de vista técnico, tudo o que pode comprometer a integridade do circuito e a performance deveria ser substituído.
Mas quem coloca isso na balança é quem pagou uma fortuna. Para tocar em casa ou fazer gravações é até “aceitável” deixar no lugar o que está funcionando, mas assume-se um risco.
Como o dono em questão quer o mais original possível, me pediu para tratar do problema e só substituir componentes caso existisse um problema, caso contrário o que é antigo era para manter.
Isso traz alguma complexidade e frustração pois até mesmo para despistar o ideal era ter a liberdade de tirar provisoriamente alguns componentes, mas até isso iria alterar a originalidade do circuito e seria visível que foram feitos trabalhos de solda, mesmo que os componentes originais voltassem para os seus lugares.
Como tudo parecia bem com os capacitores de filtro e nada ali ia ser substituído mesmo, fechei e finalmente fui ao que interessa:
Mais uma vez, praticamente tudo está no estado original. Assim como no compartimento dos capacitores da fonte, no circuito apenas foram substituídos três capacitores de bypass que assim como os da fonte secaram e deixaram de funcionar. Permaneceu apenas um “laranjão” ali na esquerda que passou a grande candidato ao motivo do problema, pois atua na primeira válvula no canal “Normal”.
Com conectores jacaré coloquei um eletrolítico novo com um valor mais alto em paralelo para ver se o ruído parava ou atenuava e constatei que apesar de muito feio, este velho capacitor laranja também não era a origem do problema.
Quase todas as soldas originais, tudo impecável e fiz questão de inspecionar uma por uma com a lente de aumento.
Próximo teste, condutividade. Estas placas na verdade são uma espécie de cartão prensado, e a utilização de estanho com fluxo + umidade criam uma meleca na superfície da placa que começa a conduzir eletricidade.
Isso é fácil constatar ligando o multímetro em escala de milivolts e medindo a tensão na placa, foi então que constatei que vários pontos conduziam eletricidade, na casa dos 0.5v.
Parece insignificante, mas é o suficiente para aumentar bastante o ruído “hiss” do amplificador e também induzir outros ruídos a depender do ganho do sinal, o que era um dos sintomas.
Para se ter a certeza, só testando.
A limpeza envolveu muitos cotonetes e Álcool isopropílico até sair toda a meleca da superfície da placa e ficar tudo limpo.
Tive de tirar os parafusos e realizar essa limpeza por baixo também.
Para garantir que nenhuma umidade restou, também utilizei ar quente para remover qualquer resquício de água.
Apesar do Álcool algumas sujeiras na verdade eram manchas e não saíram, mas acabou por ser apenas algo estético no final.
A limpeza mostrou um efeito muito positivo no som geral do amplificador que voltou a ser muito silencioso e limpo como esse circuito tem que ser, mas o problema no primeiro canal ainda estava lá rindo da minha cara.
O médoto que mais gosto para identificar defeitos é ir por exclusão de partes dividindo o circuito em blocos.
Hora de pontuar as coisas:
Os transformadores estavam bem pois o canal 2 funcionava bem.
O mesmo com as válvulas.
O circuito da inversora de fase é utilizado pelos dois canais, então eu também tinha a certeza que estava bem.
Só restava o minúsculo circuito do canal 1.
Como o capacitor de bypass não era, resolvi desligar o amplificador, remover a válvula e medir os resistores.
Normalmente com o tempo eles alteram muito o valor original, normalmente para cima e começam a aquecer muito ao ponto de criar ruídos de “quebra” dependendo do ganho. Fortes candidatos.
Para o meu espanto, todos estavam nos valores exatos, o que é raro para um resistor carbon comp mesmo produzido nos dias de hoje com toda a tecnologia disponível. Definitivamente eles pareciam todos bem.
Por exclusão, só sobravam quatro capacitores, um de “decoupling” e três que atuam nos controles de graves e agudos.
Esses “blue caps” são o horror de muitos técnicos que fazem serviços nesses amplificadores, e todos eles reclamam que a maioria dos problemas nesses amplificadores começam neles.
Temos que ter em consideração o ano de fabricação e os materiais disponíveis na época e entender que isso é normal acontecer pois nada dura para sempre.
Mas como testar isso mais uma vez sem por a mão no ferro de solda?
É possível de muitas formas, como por exemplo com um injetor de sinais e um osciloscópio para ver em qual ponto do circuito o sinal começa a ficar degradado.
Mas antes de ir para uma análise tão profunda, existe outro teste superficial que pode ajudar.
Uma função em comum desses capacitores é de bloquear corrente DC, e quando estão defeituosos eles começam a vazar, e um comportamento comum é gerar ruído ou deixar o som extremamente metálico.
Os controles podem começar a fazer barulho quando girados, e muitas vezes pensamos que são potenciômetros sujos ou gastos, mas na verdade é algum capacitor bandido causando isso tudo.
Hora de injetar sinal e medir um a um e ver se detectamos fugas.
Foi aí que encontrei o malandro vazando cerca de 1v:
Bom, eu tinha a autorização para trocar o que tinha que trocar. Tenho guardado alguns capacitores NOS (new old stock) vintage para essas ocasiões especiais que nunca acontecem e um deles era exatamente do valor necessário. Consegui algumas unidades feitas na República Tcheca produzidos nos anos 60/70 modelo “Axial” com o tamanho perfeito para esse circuito.
Localizado, fiz a substituição com muito cuidado, na eventualidade de instalar o original novamente em caso de necessidade.
Capacitor substituído, ligado, testado e problema resolvido. O bichinho voltou a cantar bonito.
Além das limpezas e dessa reparação, também verifiquei todos os parafusos e jacks, bem como aquele tapa no ajuste de bias para tudo ficar no lugar.
Foi uma oportunidade incrível ter em casa essa pedeaço de história por uns dias e também poder abrir e realizar esse serviço.
É claro que ele não iria voltar para o dono sem que eu antes tirasse uma casquinha:
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